Monstruário Rio 2016
Rafucko
Stand de venda de "anti" souvenirs do Rio 2016 e vídeo.
Monstruário Rio 2016
"O Monstruário 2016 é uma loja de "anti" souvenirs (do francês, "lembrança", "memória") com produtos que estampam a violência do Estado contra a população, seja no extermínio do povo da favela, ou nas remoções forçadas para as Olimpíadas. Há também uma crítica à forma como a mídia noticia isso tudo: uma pequena nota no canto da página principal, não dando a verdadeira importância ao assunto, criminalizando as vítimas da violência policial.
A intenção do trabalho era chamar atenção para essa dinâmica naturalizada, mas como a discussão tomou outro viés, resolvi tirar de exposição os "anti-souvenirs" e substituí-los por souvenirs oficiais, e seguir chamando a exposição de "Monstruário", uma vitrine que pretende esconder as monstruosidades praticadas pelo Estado contra a população."
Faça click aqui para ler o texto completo do Rafucko sobre seu trabalho.
Veja alguns comentários e críticas em relação á polémica levantada pela obra do Rafucko embaixo.
Rafucko
Rafael Puetter, mais conhecido como Rafucko, é roteirista, videomaker e artivista. Ganhou destaque na internet fazendo vídeos de sátira política. Em seu trabalho, trata de temas que vão desde a homofobia até as remoções involuntárias para os grandes eventos, passando pelas questões globais do autoritarismo da Polícia Militar e da cobertura tendenciosa da mídia. Realizou um Talk Show onde entrevistou dez personalidades, projeto financiado através de uma campanha de crowdfunding. Em 2013, foi listado pela revista Galileu e pelo portal youPix como umas das 25 pessoas mais influentes na internet brasileira. Em maio de 2016 apresentou no Festival Multiplicidade uma instalação sonora que transforma dados de violência policial em música, em conjunto com outros três artistas. A parceria se deu através do LabCriativo, uma residência oferecida pelo People's Palace Project, do Reino Unido.
+ info
Carta aberta do Rafucko às familias afetadas pela violência policial no rio de Janeiro e a todos que se incomodaron com o Monstruário Rio 2016.
Alguns comentários e críticas
"Monstruário 2016 é um trabalho que assusta, que indigna e que (co)move. Esta... obra?... é um dos trabalhos resultantes da residência artística oferecida pela empreitada ComPosiçoes Politicas. O local da residência: o Complexo da Maré. Área da operação militar da propalada "guerra às drogas" que, aos moldes da "guerra ao terror" de Bush submeteu moradores e sonhos à uma rotina de violações de seus direitos, à mortes/desapropriação do valor vida. E aí eu transcrevo texto fruto de meu primeiro olhar sobre este trabalho do artista Rafucko que postei num grupo de discussão. Também fruto da minha mobilização diante de certo discurso que moraliza, desqualifica e julga antes de pensar e sentir tudo que trabalhos como esse propõem.
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Assim como Rafucko não pode (ou não deve, sei lá) falar por outro, não se deve falar por ele. Ele fala por si, através de seu trampo. Vi o site do projeto Monstruário 2016 e teci minha conclusão e ela não passa por esse monstro que tecem dele mas pelo monstro que o Estado é - por ser o que é. (...)
Vender isso dá um enorme sentido ao trabalho.
Discutir o trabalho dele, o processo deste trabalho, as caras aos tapas... dá um enorme sentido ao trabalho dele.
O "ser foda" ou "ser de mal gosto" dá enorme sentido ao trabalho dele e me remete a trabalhos que exigem uma cara-a-tapismo muito forte. Num mundo de grampeações, disse-me-disses, listas ocultadas e reveladas, intenções boas e más, heróicas ou anti-heróicas, onde se cobra a postura certa e a ética perfeita, novamente, pro que eu absorvi (ainda não vi ao vivo), o trabalho dele ganha novamente um sentido enorme.
A única coisa sem sentido mesmo é o Estado Policial Jurídico Midiático Sem Direitos que tudo vende, tudo apaga, remove, escrotiza, pisa, humilha, tapa na cara, bioapodera, esculacha. Repito, não é possível não vender essa obra. A venda dela completa o sentido do trabalho; configura a energia do protesto.
Comprá-la ou não comprá-la é a performance possível pra cada um; é o outro sentido do trabalho. Essa porra de ato de conivência/convivência/conveniência nossa com o horror.
(...)
Acho que periga termos atitudes MOROalistas sim e acho importante estar atento pra não repetirmos essas atitudes que nos agridem. Não estou dizendo que não seja pra questionar mas julgar acho complicado. Sou adepto da dicussão e do conflito mas também da conversa, que o mundo já tá cheio de tiro, porrada e bomba e pouco olho-no-olho.
Quero ver os outros trabalhos!
Vlw!!!
Carlos D Medeiros, o Batman pobre.
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A literalidade quase didática do trabalho do artista Rafucko, que transforma o extermínio em souvenirs “para gringo na laje ver”, tais como pratos com o símbolo do BOPE, bichos de pelúcia do caveirão e cartões postais da Vila Autódromo foi intensamente rechaçada e o artista optou por retirá-lo da exposição. Uma censura controversa, considerando-se o potencial agressivo deste trabalho não apenas para ironizar o campo das artes visuais e sua relação tensa com o mercado (algo posto no dadaísmo, na pop art, na arte povera e em algumas poéticas críticas do espetáculo nos anos 90), mas, sobretudo, para pensar o valor da vida humana ali presentificada em suas encarnações materiais como regalos de viagem, quase uma “biopirataria” num contexto desenfreado de imagens digitais por toda a parte, forte crítica ao Estado policial racista e ao genocídio.
Leonardo Bertolossi
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Este último (Rafucko) foi duramente criticado nas redes sociais (que por sua vez nos faz acreditar na força da discussão, encobrindo a aproximação histérica do ódio ao próximo) pelo uso da questão da negritude como parte de um processo de fetichização da obra. Em certo sentido, talvez seja um dos trabalhos que termina por tensionar de maneira potente todas as relações que foram sendo estabelecidas ali (arte x espaço público x questões raciais x incapacidade de aproximação da realidade concreta do mundo). Se as imagens carregavam uma carga inaceitável de violência e se os trabalhos poderiam vir a ser comercializados enquanto souvenir-metafórico de uma olimpíada já desastrosa, as encruzilhadas e as imbricações apontadas, talvez ajudassem a desvelar nossa responsabilidade enquanto cidadãos diante das infinitas fatalidades que ocorrem todos os dias em diversas comunidades do Brasil e do mundo e que servem como elemento de promessas, fotos de jornais, milagres e eleições políticas. Apesar de não conhecer seu trabalho como artista visual (se é que há), e embora reconhecendo sua importância enquanto provocador público, a impressão que surge é que o trabalho foi eleito como uma válvula de escape para um ódio contido que foi recalcado ao longo de alguns séculos e para outras discussões internas da exposição que vieram se arrastando em quase silêncio. Por outro lado, caso o mesmo acreditasse na potencia de debate e provocação do trabalho enquanto tal, jamais o teria retirado da exposição. O que terminou acontecendo.
Alexandre Sá
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Militância polícia
A polícia enquadra, aponta os culpados, organiza quem pode circular e quem não pode, quem pode falar e quem deve apenas escutar, define os que podem sair de casa e a que horas o toque de recolher encerra a todos.
Com a polícia pode haver revolta, mas não há argumentação, espera, humor, poesia ou diálogo.
A lógica policial impregnou a militância.
Por todos os lados os enquadramentos estão fechados e asseverados. Por vezes, mais do que isso, aquele que não milita é focado como o inimigo.
Nos últimos tempos, não tomar posições assertivas sobre a continuidade ou não do governo Dilma, por exemplo, virou um mal maior. A militância polícia aponta o dedo e diz da impossibilidade da dúvida ou do desinteresse mesmo.
Passado o século que viu as artes militantes descobrirem que não precisavam tratar seu público como receptores passivos, a militância polícia parece jogar no lixo o primeiro gesto fundamental em relação ao leitor/receptor: o outro pensa e sente e não precisa ser tutelado, organizado.
Em alguns meios, por exemplo, o uso do genérico masculino – amigos, caros – para se referir a um grupo multigênero, passou a ser visto sinal de preconceito. Em algum lugar alguém se levantará pra dizer: prezadxs vocês não vão militar não?
O mesmo vale para a radicalidade policialesca no uso linguagem em relação às questões de gênero. Caminhar entre noções e definições, em que o uso do termo opção sexual, por exemplo, - no lugar de orientação sexual - pode ser visto como um gesto fóbico faz com que poucos se arrisquem em campo tão minado.
A polícia sabe quem pode circular em certos espaço e quem não pode. A polícia esquadrinha, divide, separa.
Para andar em determinada parte da cidade é preciso ser identificado, usar as mesmas roupas, pertencer às mesmas facções. Como em uma cidade, os espaços abertos a todos se tornam também os espaços não políticos, clean, sem pichações ou marcas da presença humana. A militância polícia se adequa ao modo de ser das cidades, dividas entre os espaços impenetráveis para uns ou outros – favelas e shoppingcenters - e os vazios de política – novas praças com hiperpresença arquitetônico policial.
Com a polícia não se brinca – aprendemos isso cedo.
O que diria a militância polícia hoje de um filme como “Mato Eles?”, de Sérgio Bianchi, que com humor trata a questão indígena eventualmente se colocando no lugar do opressor para explicitar o massacre? Ou com a capa de 1978 do Charlie Hebdo que, para criticar os negacionistas da época, exacerba seus pontos de pontos de vista e coloca Hitler como o cara “super simpático”? A resposta não é difícil. Seriam massacrados primeiro por não terem direito de falar da questão indígena sem serem índios – a polícia sabe quem pode falar; segundo porque “com essas coisas não se faz humor” – a policia tem certezas e a inteligência do outro para entender o humor não pode ser considerada.
As recentes críticas ao trabalho de Rafucko, são exemplares. Quando o artista faz como Bianchi ou Charlie, exacerbando o lugar do opressor para desnaturaliza-lo, os críticos iluminados dizem: as pessoas não vão conseguir entender, eles vão ler ao pé da letra, eles vão achar que você está dizendo que é isso mesmo, que Hitler é simpático e que revistar negros indo para a praia no Rio de Janeiro são coisas legais.
O primeiro gesto da militância polícia é dizer: eu penso e você não. Eu sei e você não.
Desmontar a polícia não é simples. Ela organiza nossos mundos complexos. Desmontar a polícia é poder ir a qualquer lugar, circular sem fronteiras, partir do princípio de que todos pensam e são inteligentes, de que qualquer um pode ser um interlocutor, é poder incluir a dúvida, o humor, a poesia e a espera.
Cezar Migliorin.